Amazônia: a necessária arte de cultivar a esperança

Amazônia: a necessária arte de cultivar a esperança

Gilberto Marques e Indira Marques

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“Eu não quero morrer. Eu quero ver meu filho crescer!” nos fala, num tom de apelo, Erasmo Theófilo, 33 anos, numa das vezes em que se refugiou, se exilou fora da comunidade em que mora em Anapu-PA.

Sim, no Brasil temos centenas de refugiados brasileiros dentro do próprio território nacional. Número ainda maior é daqueles que sofrem o deslocamento forçado, tal como ocorre com as populações vítimas de guerra. A conflito na Ucrânia produziu 4,8 milhões de refugiados, segundo a ONU.

Em nosso país são outras guerras que obrigam dezenas de milhares de pessoas a deixar suas casas ou suas roças, destruídas para que sobre elas se ergam algum megaempreendimento, com aconteceu com a construção da hidrelétrica Belo Monte no rio Xingu, na Amazônia.

Outras têm que abandonar suas casas nas periferias urbanas por causa das agressões contra suas religiões de matriz africana ou porque participam de alguma organização político-social que desagrada o narcotráfico, a milícia ou outro agrupamento econômico ou religioso dominante.

Erasmo e sua família sofrem constantes refúgios porque ele organiza trabalhadores rurais do lote 96 (e mais algumas áreas) em Anapu-PA. O município, às margens do rio Xingu, no coração do Pará, ficou conhecido mundialmente por conta do assassinato da irmã Dorothy Stang, em 2005. Depois dela, muitas outras foram assassinadas, 16 mortos entre 2015 e 2019, mas sem a mesma visibilidade da religiosa norte-americana.

Quais as razões e os interesses por trás dos crimes cometidos contra trabalhadores e trabalhadoras rurais, indígenas e ativistas ambientais e de direitos humanos na Amazônia?

Na região, com quase 30 milhões de pessoas e 96,7 milhões de bovinos, há mais de três cabeças de boi para cada habitante. Parte expressiva dessa produção ocorre em propriedades originadas em grilagem de terra e até mesmo que usam trabalho escravo. Isso pouco interessa às grandes redes de processamento e comercialização de proteína animal. O pecuarista Maurício Pompeu Fraga foi incluído na lista de pessoas que escravizam trabalhadores e ainda assim continuou vendendo seu gado para os grandes frigoríficos.

Já a grilagem, que estimula o desmatamento e os assassinatos no campo, é impulsionada pela especulação fundiária. Para usar um termo do jornalista Lúcio Flávio Pinto, os “piratas fundiários” se apropriam de terra alheia de agricultores, indígenas ou floresta pública. Derrubam a mata, comercializam a madeira e, em geral, formam um pasto. Em seguida, vendem a terra para outra pessoa e seguem em busca de nova terra para grilar. Quem compra, até por conta do preço rebaixado, sabe que a terra é grilada, mas pede sua regularização-legalização argumentando que a comprou de boa-fé.

Nos momentos de maior instabilidade política e econômica do país, o desmatamento cresce, impulsionado pelas cadeias do agronegócio e pela especulação fundiária. Quando isso se associa ao estímulo de um Presidente ecocida como Bolsonaro, o desmatamento bate recorde. Segundo o INPE, os 10 meses iniciais de 2022 já superaram o desmatamento do ano inteiro de todos os anos anteriores, desde 2015. Então, a carne bovina que compramos nos supermercados pode ter mais do que somente sangue de boi, pode ter uma história feita de sangue humano e floresta derruba. Presidente Lula: pense nisso quando apresentar picanha como promessa para ganhar votos.

Batemos recordes na produção do agronegócio, mas, segundo pesquisa da rede PENSSAN, 33,1 milhões de pessoas passam fome no Brasil em pleno 2022. Na região Norte 71,6% dos moradores sofrem alguma insegurança alimentar.

Se não são os pobres, quem se beneficia com isso? As grandes companhias do agronegócio, sejam as estrangeiras (como Cargill e Bunge), sejam as de origem brasileira. O grupo J&F controla a JBS (Friboi e Seara) e tem unidades de negócio em 190 países.  A título de comparação, a ONU é formada por 193 países e mais dois estados observadores.

No Pará, desde meados dos anos 1980, a mineradora Vale já exportou mais de 5 montanhas de ferro equivalentes ao morro Pão de Açúcar no Rio de Janeiro que tem 396 metros de altura, sem pagar nada de ICMS sobre isso. Grande parte do capital da mineradora está em mãos estrangeiras e até pouco tempo a região de Carajás, de onde se extrai o minério, era a que tinha a pior expectativa de vida entre as 12 regiões de integração do estado.

Do potencial para novas hidrelétricas no Brasil 75% estão na Amazônia. É por isso, que dezenas de novas hidrelétricas estão planejadas, entre elas cinco no rio Tapajós. Belo Monte foi construída no rio Xingu, deixando um custo ambiental e social terrível. Além do deslocamento forçado das pessoas, o rio ficou mais estreito após a barragem, diminuindo as margens. Os frutos das árvores não caem mais sobre suas águas. Resultado: menos alimento para os peixes, menos cardumes, menos alimento para os ribeirinhos, mais fome.

Por falar no Xingu, Erasmo está em seu quinto refúgio, abrigado por um programa de proteção de defensores de direitos humanos. Eduardo, de pouco mais de um ano, já passou por três períodos de refúgio, que é quando a família, para não morrer assassinada, tem que fugir de sua comunidade e se abrigar em um lugar distante. Ele nasceu num desses períodos e foi nele que Erasmo nos externalizou o apelo de não ser assassinado.

Na sua comunidade tem se tornado comum os grileiros de terra tocarem fogo nas roças e nas casas de agricultores e agricultoras. Não satisfeitos, em agosto desse ano queimaram a escola que foi construída pela própria comunidade. Na ausência de Erasmo, uma moradora de lá, que não quer ser identificada, entra em contato conosco e, desesperada e chorando, relata: “Essa noite teve muito tiro aqui. Queimaram a escola Paulo Anacleto e até agora não veio ninguém, não veio polícia. A gente passou a noite no mato, eu com minha família... a minha filha de cinco anos chorando até agora. E até agora não chegou ninguém, nenhuma autoridade, nem polícia. Estamos aqui a Deus dará.” Ela mesma, alguns meses antes, viu um pistoleiro apontar a arma para a cabeça de sua filha, ordenando que a criança parasse de chorar diante de uma casa de agricultor que estava sendo queimada a mando dos grileiros.

Longe de lá, em mais um refúgio, Natalha Theófilo, companheira de Erasmo, relata que passa as noites em claro, em meio a crises de ansiedade. Erasmo é cadeirante e mesmo assim conseguiu sobreviver a três tentativas de assassinato. Mas recebeu um “aviso”: iriam tocar seu coração, mas ele continuaria vivo. Isso significa que matariam pelo menos um de seus quatro filhos. Então, decidiram sair da comunidade mais uma vez.

Milhões de pessoas depositaram as esperanças na pessoa de Lula. Erasmo sabe que a eleição de Lula contra Bolsonaro representou uma grande vitória nossa, e particularmente de quem defende a Amazônia. Por outro lado, também compreende que, pelo arco de alianças, o terceiro governo Lula pode ser mais conservador que os seus dois mandatos anteriores. O petista tentará atrair até mesmo parte da base parlamentar de Bolsonaro.

Muitos dos que estão ou estarão com Lula não defendem a Amazônia, ao contrário. E quando nos levantarmos contra possíveis políticas conservadoras do governo, parte daqueles que nesse momento estão do nosso lado se voltarão contra nós. Dirão que questionar o novo governo representará fortalecer o bolsonarismo.

É verdade que o fascismo tentará desestabilizar o governo e fazer o que já fizeram no Paraguai, Bolívia e em outros países. De fato, já tenta fazer isso mesmo antes de Lula tomar posse. Mas Belo Monte foi construída nos governos petistas. A medida provisória 458, regularizando propriedades griladas de até 1.500 hectares na Amazônia, foi assinada por Lula em 2009.

Então, como construir esperanças numa Amazônia e num país com essa configuração?

Natalha publicou uma carta no site samauma.com. Relata que o primeiro atentado que sofreram foi pouco depois de ela chegar à Anapu, quando iniciava o namoro com Erasmo. Em meio à tensão, ele pede para ela: “Fica comigo?”. Ela responde: “Só se for para viver. Não faço plano de morte, só de vida.” Durante refúgio atual, ela escreve: “Esse é o meu lugar de fala, o de mulher preta refugiada, lembrando a você que existo, que meu companheiro existe, que minhas crianças existem, que queremos viver”.

As casas queimadas foram reconstruídas. A mesma moradora que relatou a queima da escola, poucos dias depois, mandou mensagem: “Vamos juntar os pais e vamos fazer o colégio de novo. Nós não vamos desistir não. Vamos lutar pelo nosso direito. Com fé em Deus vamos vencer”.  Escola foi reconstruída e uma avaliação recente da secretaria municipal de educação constatou que os alunos da comunidade estão entre os que têm o melhor rendimento escolar do município. Erasmo alimenta o sonho de ver naquele lugar ver “um posto de saúde... quem sabe uma faculdade, um colégio agrícola, quem sabe”.

Quando Erasmo está triste e pergunta à Natalha o que vão fazer da vida deles, ela responde com a força de uma feminista preta: “Vamos ficar vivos. Nossos filhos precisam de nós vivos”.

Essa força está presente na população das periferias amazônicas, que enfrenta as cidades marcadas pela desigualdade social; está nas lideranças mulheres indígenas que têm assumido um protagonismo muito importante na luta contra os garimpos na Amazônia; está nas guardas de autodefesa indígenas protegendo os territórios e seus povos; está na retomada dos territórios quilombolas e na resistências dos ribeirinhos contra a construção dos grandes portos graneleiros; está em agricultores e agricultoras que, contra todas as adversidades, continuam plantando. Se plantam é porque esperam colher. Mas não é um esperar de ficar parado e sim de esperançar, de atitude, de luta. Cultivam esperança.

Camponeses e camponesas do lote 96 dizem que grileiros podem até queimar suas casas, mas não os seus sonhos. É porque não desistiram de lutar, e porque fazem a luta coletiva, ao qual se soma a CSP Conlutas, que o que parecia impossível se tornou realidade. Eles impuseram uma derrota ao governo Bolsonaro. O Incra teve que editar uma portaria criando o assentamento Dorothy Stang nos lotes 96 e 97.

E verdade que, no governo Bolsonaro, quilômetros da Amazônia foram derrubados, rios contaminados e muitas lideranças mortas. Mesmo assim, a floresta teima em crescer novamente, não paramos de lutar e eles não conseguiriam queimar nossos sonhos. Exatamente por isso, continuamos de pé e preparados para os novos desafios.

Indira Marques – Docente da UPFA (Universidade Federal do Pará), com doutorado em Geografia com ênfase em Geografia humana, ambiental e agrária.

Gilberto Marques - Docente da UFPA (Universidade Federal do Pará), com doutorado em Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade.

 

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